O PRANTO DE MARIA PARDA DE GIL VICENTE
A obra vicentina apresenta uma época de transição. Um tempo onde a soberania daquilo que estava instituído e as instituições são gradualmente subvertidas e a sua pertinência questionada. Este momento singular não foi único, nem isolado na história. A ordem político-social fortalece-se em resposta às interrogações que a comprometem, criando novas questões às quais terá de se reestruturar na busca da resposta.
Por conseguinte, se observarmos o passado, podemos realmente encontrar a marca deste círculo perpétuo, mais ou menos acentuado mas sempre presente.
Entretecida de interrogações sobre a ordem e costumes estabelecidos, a obra de Gil vicente, encontra a intemporalidade e um eterno retorno à nossa condição de seres interrogantes.
Assim, transpõe-se Maria Parda para o século XXI e eis que deixa de ser uma identidade quebrada pelos vícios da vida, transmutando-se numa mulher obcecada pela sua necessidade de preencher e justificar as suas “faltas” através do consumo desmedido.
Desta forma, Maria Parda renasce como qualquer um de nós, vítima da sede de ter e querer em detrimento de quem é, e da consciência daquilo que é realmente indispensável.
A sede do vinho não é mais do que a sede do espírito. Aquela sede imaterial de, com o palpável, saciar os vazios de uma alma que sente e se ressente da solidão entre os pares.
Maria parda pertence a uma sociedade de consumo bem atual, onde a solidão se encontra vincada pelas suas palavras e, onde o possuir é vendido como terapia. No entanto, tal como hoje encontramos em toda a parte, o seu espírito encontra-se vazio quando confrontada com vinho que escasseia.
Por forma a potenciar o carácter intemporal do espetáculo o texto mantém-se fiel ao original, mas usando a linguagem cénica e do ator como elementos vivos desta pulsante atualidade. Com este trabalho procura exaltar-se a eterna, não inata, e crescente insatisfação. Não na forma de ambição doentia, mas por desfasamento, por irreconhecimento do eu ou até mesmo por dormência.
1522 foi um Ano de fome em Portugal. Gil Vicente, autor de teatro temporariamente afastado da Corte por morte recente do rei D. Manuel I, aborda a crise que o país atravessa compondo as trovas de “pranto” de Maria Parda. Esta mulher do povo, pobre, envelhecida, marginal das ruas de Lisboa, vem à cena lamentar o mau período que o país atravessa apresentando a privação maior a que a situação a obriga: a falta de vinho! Desesperada, lamenta a visão da sua cidade desprovida do precioso néctar que outrora abundava. Decide-se então a percorrer algumas das tabernas onde sabe haver ainda vinho; mas os taberneiros, seus velhos conhecidos, negam-se a fiar o agora escasso e encarecido líquido: “em tempo de figos / não há aí nenhuns amigos...”. Finalmente, Maria Parda decide-se a morrer (“de sequia”), e apresenta-nos um testamento público delirante, elaborado e gritado bem de acordo com a sua visão vínica do mundo em redor...
No que se refere ao texto vicentino, leem-se nele referências à grande seca que dizimou Portugal, em 1522 – ou seja, no ano em que a peça foi escrita –, e que resultou na escassez de produtos agrícolas, dentre eles a uva que, consequentemente, afetou drasticamente a produção e a comercialização do vinho. É através deste viés que Gil Vicente dá voz à Maria Parda, personagem alcoólatra e anônima do Portugal seiscentista que chora ao ver as “ruas de Lisboa com tão poucos ramos nas tavernas e o vinho tão caro”, sem o qual não podia viver.
A lamentação de Maria Parda sobre a falta de vinho relaciona-se metaforicamente também com a falta de víveres em geral, comum à época e agravada pela seca. Integrado neste contexto, o Pranto de Maria Parda reveste toda a sua significação, levando, então, este autor a indagar: Como não ver que Maria Parda a morrer à sede, é a imagem invertida dos desgraçados que morriam à fome? Todavia, Maria Parda é uma velha, uma bêbeda, e mais ainda: uma mulata. Por isso é necessariamente ridícula, seu desespero é cômico, seu testemunho burlesco. A personagem faz rir – e isso é uma maneira de exorcizar o drama da fome. Por conseguinte, o texto se revela uma paródia pertencente ao "mundo às avessas" no estilo da chocarrice popular, esconjura e elimina o sofrimento e a morte .
Através destes procedimentos, o Pai do teatro português empreende outro ato transgressor, desta vez ao apontar como sujeito enunciador de seu texto uma mulher, parda na cor e na situação social e que representa, “triste, desdentada, escura” , com a boca e as gengivas secas por não lhe restarem nem mesmo cinta, fraldilha ou mantilha, vendidas “ontem por dois mil cruzados”.
Contudo, aproximando-se irónica e parodisticamente da liturgia do teatro religioso, a personagem empreende uma nova via crucis,( como a que Cristo fez) desta vez ao vagar, solitária, pelas ruas de Lisboa, padecendo pelas tavernas de que outrora fora freguesa habitual, mendigando a bebida ora negada.
Do ponto de vista retórico, no entanto, Gil Vicente preserva o tom hiperbólico do jogral leonês ao magnificar o espectro do desespero de Maria Parda na crise de abstinência a que fora involuntariamente submetida e que a levou a proferir seu próprio testamento. Ou seja, é neste contexto que se dá a simultaneidade entre a degradação e a consagração evocada por Paz, que se configura na nova roupagem que o mestre renascentista aufere aos elementos medievais do teatro português, evidenciando traços da sátira social.
Gil Vicente une a dramaticidade da personagem ao riso trágico e a comicidade que permeiam os ouvintes e leitores de seu texto, expandindo, deste modo, a tensão da personagem e do teatro enquanto gênero em transformação.
Gil Vicente une a dramaticidade da personagem ao riso trágico e a comicidade que permeiam os ouvintes e leitores de seu texto, expandindo, deste modo, a tensão da personagem e do teatro enquanto gênero em transformação.
O texto vicentino, portanto, revoluciona não apenas os elementos teatrais que se instauram, como põe em xeque a figura feminina, as instituições eclesiásticas, dando, assim, visibilidade aos excluídos, pardos na cor e no ser.
comentarios II
O Pranto de Maria Parda é uma das Melhores peças de Gil Vicente. Ele retratou a realidade das classes pobres de Lisboa, no Século XVI. Gil Vicente procurou Revelar a vivência dos negros e mestiços chegados e nascidos na metrópole, calcula-se que perfaziam 10% da população de Lisboa. Muitos eram alcoólatras, E eram deprimidos pela subvida serviçal e sem perspectivas de futuro a que estavam votados. Vêm-se canalizados na figura literária de Maria, perspicaz e corrosiva observadora da sociedade, amante do vinho carrascão. Quando se viu defronte de atrevida mestiça, da base da pirâmide social, para mais mulher, mais a mais sexualmente livre, assumirem, entre canadas de vinho, uma das mais lúcidas e desesperançadas críticas à sociedade dos "fumos da Índia”. Uma criatura parda perdida e deambulando com desespero na solidão, procurando uma voz que não responde. É importante associarmos a esse quadro a figura de Maria parda, personagem do “Pranto” escrito em 1522. Nesse monologo, Gil Vicente subverte o cânone ao retomar um gênero do passado inerente à morte de figuras notáveis da idade media, como o feito por um JOGRAL em memória de D. Dinis, o rei trovador. No que se refere ao texto vicentino, entretanto LÊEM-SE REFERÊNCIAS À GRANDE SECA QUE DIZIMOU PORTUGAL, EM 1522, E QUE RESULTOU NA ESCASSEZ DE PRODUTOS AGRÍCOLAS, DENTRE ELES A UVA que, consequentemente, AFETOU DRASTICAMENTE A PRODUÇÃO DE VINHO. É através desse viés que GIL VICENTE DA VOZ À MARIA PARDA, PERSONAGEM ALCOÓLATRA E ANÔNIMA QUE CHORA AO VER LISBOA COM TÃO POUCOS RAMOS NAS TAVERNAS E O VINHO TÃO CARO. Assim, aproximando-se irônica e parodisticamente da liturgia do teatro religioso, A PERSONAGEM EMPREENDE UMA NOVA VIA CRUCIS AO VAGAR, SOLITÁRIA, PELAS RUAS DA CIDADE, PADECENDO PELAS TAVERNAS DE QUE OUTRORA FORA FREGUESA HABITUAL, MENDIGANDO A BEBIDA ORA NEGADA.
Maria Parda lamenta-se pela falta de vinho nas tavernas de Lisboa, evocando os tempos em que ele era abundante e barato. Depois, RESOLVE PEDIR O VINHO FIADO A ALGUNS TABERNEIROS QUE LHE NEGAM. Por fim, decide morrer e PRONUNCIA UM EXTENSO TESTAMENTO QUE SE REFERE OBSESSIVAMENTE AO VINHO. Maria Parda pode bem ser uma representante deste povo esfomeado desde finais de 1521, que se queixa da falta e da carestia. FREI LUIZ DE SOUSA viria a descrever com veemência, nos seus Anais de D. João III (L. I Cap. XI), a esterilidade e a seca de 1521, assim como a fome que Lisboa viveu nos finais desse ano e ao longo do seguinte. Em começos de 1522 morria-se de fome nas ruas da capital, tal como Maria Parda vai morrer de sede. No texto, os SEIS TABERNEIROS que recusam fiar o vinho poderão representar tanto a prudência quanto um MERCADO LISBOETA SOVINA, na contramão da caridade e do espírito das misericórdias em que se empenhou a rainha D. Leonor e, com ela, o próprio Gil Vicente. UM DOS TABERNEIROS É UM CRISTÃO-NOVO E TODOS USAM SENTENÇAS ECONOMICISTAS, RELATIVAS À POUPANÇA E AOS PREÇOS. Gil Vicente conjuga oportunamente, virtuosismo retórico do constrangimento poético, a que se obriga, com a CARACTERIZAÇÃO JUDAIZANTE E MATERIALISTA DAS PERSONAGENS DOS VENDEDORES. EM ÉPOCA DE ESCASSEZ, MARIA PARDA REPRESENTA O DESGOVERNO, O GASTO EXCESSIVO COM VÍCIOS TERRENOS, OU MESMO O PECADO; OS TABERNEIROS, POR OPOSIÇÃO, SÃO FIGURAS QUE REPRESENTAM CERTA PRUDÊNCIA, BASEADA NA SABEDORIA PROVERBIAL POPULAR.
A morte final de Maria Parda seria como que o castigo da sua dissipação.
Quanto à LOCALIZAÇÃO deste eventual auto, a própria Maria Parda indica, ainda que de modo impreciso: d’aqui da sé (216b). Não sabemos de aponta para o bairro da Sé, para uma rua ou praça dessa zona, se aponta para o adro da catedral, se para o seu interior, se para um claustro. Sob a invocação de N.ª S.ª da Piedade, era essa capela chamada de Terra Solta, pois nela se praticava a DEVOÇÃO ANUAL DO ENTERRO DOS POBRES (Julio de Castilho, VI, 55-61). Note-se que o texto encena um pedido de piedade e um enterro: MARIA PARDA VAI MORRER E FAZ AS DISPOSIÇÕES PARA SEU FUNERAL.
O texto não é apenas uma fala ausente numa situação ficcional. A fala vem acompanhada de ações a delinearem um breve plot, se bem que simplicíssimo, e essas ações são predominantemente verbais:
1.ª a queixa pelo mal presente com evocação do bem passado;
2.ª a decisão de pedir fiado;
3.ª o ato de pedir;
4ª a recusa dos taberneiros (repetição em alternância destas duas ações, por seis vezes);
5.ª a decisão de morrer;
6.º a ordenação do testamento;
Todas as ações ocorrem in prasentia, tal como o discurso direto das personagens, e implicam em um desfecho no futuro: Maria Parda irá morrer.
Do ponto de vista retórico, no entanto, Gil Vicente preserva o tom hiperbólico do JOGRAL LEONÊS ao magnificar o espectro do desespero daquela que é parta tanto na cor quanto na figuração social através da crise de abstinência a que fora involuntariamente submetida e que a levou a proferir seu próprio testamento a NOÉ, o plantador da primeira vinha, como seu patrono.
Desse modo, também VEMOS QUE A INSERÇÃO DO NEGRO NA SOCIEDADE PORTUGUESA TEM, A PARTIR DO TEATRO VICENTINO, PERSPECTIVAS QUE, CONTRARIANDO A “CULTURA OFICIAL” a que se refere Bakhtin, EVIDENCIAM A CRÍTICA SOCIAL INTENSA DE QUE SUA OBRA É PORTADORA. POR ISSO, A COR DE MARIA PARDA E DAS DEMAIS PERSONAGENS REFERIDAS TORNAM-SE DETALHE, VISTO QUE SUA CONTRIBUIÇÃO EFETIVA ESTÁ NA COMPOSIÇÃO DE TIPOS REAIS E MULTIFACETADOS DA ÉPOCA QUE RETRATOU. Mais importante, nos parece, são os diversos modos pelos quais o colonialismo se estendeu da península às colônias e as reações dos negros a ele.
Maria está moribunda, pede uma candeia ( lâmpada a azeite), emprega um léxico que remete para a semântica da tristeza, do vazio e da morte. Será parda por mestiçagem ou pela sujidade que a vida dos quelhos lhe cobre a pele? "Que estou já como minhoca que puzeram a secar." Todos os vicentinos explicam a falta de vinho pelo momento de crise que atravessou o país nesse ano. Gil Vicente menciona uma série de vinhos que fazem as delícias de um enólogo, citando os nomes, as regiões e os países. Maria parda prefere o vinho de Lisboa e do barreiro, mas também gosta de um vinho sofisticado, o vinho do Chipre, o de Malvasia. Estabelecida uma relação entre o vinho e as funções pneumáticas do corpo humano, ideia aristotélica apresentada nos problemas: o vinho causa perturbações nos indivíduos, que vêm do sumo da uva , que faz vento. "Quando eu rua per vos vou , todo-los traques que dou, são suspiros de soidade, pera vós ventosidade,nasci toda como estou." A peça está inundada pela água no corpo de maria, nas babas, na urina e no choro. Por contraste com o vinho, a água é a bebida da abstinência, maria rejeita-a e evoca a lei muçulmana da proibição do vinho. A água é abundante, todos os taberneiros oferecem água. Encontramos também uma série de recipientes relacionados com o vinho: canada, odre, pipa, quartilho, tonel e tornos. Os recipientes estão vazios e lavados. Maria queixa-se da lavagem: "uma borracha minha com que me hajam d'encensar". É uma celebração a diónisos em que por influência do poder cristão gil vicente personificou a quaresma através da velha mulher que se esvazia, "na era de vinte e dous". É tragicómica esta Maria parda que mesmo pressentindo a morte, o desespero da sede, não abre mão da sua identidade. Preserva-se mesmo que seca e vazia. Faz um testamento que proclama e deixa todos os seus rotos haveres a quem lhe merece
homenagem, que são os bons bebedores de vinho.
Bibliografia
http://missuqueiroz.blogspot.com.br/2012/08/comentario-sobre-obra-o-prantode-maria.html
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